Cronobiologia – quando comer o quê?

Cronobiologia – quando comer o quê?

A cronobiologia é uma ciência que se dedica ao estudo da relação entre o tempo cronológico e o nosso ritmo biológico e dos problemas que resultam da desregulação de ambos. Esta é uma ciência recente, mas que começa cada vez mais a ser valorizada e neste podcast procuramos compreender o porquê! 

Em primeiro lugar explicar que o tempo cronológico designa as horas e os dias, enquanto o ritmo biológico que também podemos designar por ritmo circadiano é o período diário sobre o qual se baseia o ciclo biológico dos seres vivos e que é influenciado pela variação de fatores diretos como hormonas e pela variação de fatores externos como a diferença da luz durante o dia e a noite, a variação da temperatura, a nossa alimentação e exercício físico.

Hoje em dia vivemos numa sociedade em que temos uma necessidade constante de nos mantermos ligados, desde que acordamos até ao momento de nos deitarmos passamos horas em frente a ecrãs, quer seja por questões relacionadas com trabalho, ou apenas como forma de lazer. Além dos nossos ecrãs usamos grandes quantidades de iluminação artificial, trabalhamos em horários flexíveis, nem sempre durante o dia, muitas vezes em sítios fechados que necessitam de mais luz artificial, iluminamos as nossas ruas à noite e a primeira coisa que fazemos assim que chegamos a casa é carregar no nosso interruptor de luz, naturalmente! Além disso hoje em dia facilmente podemos apanhar um avião e atravessar uma série de fusos horários, num espaço de tempo muito curto, de apenas algumas horas, causando a alteração do ritmo biológico a que chamamos de “jet lag” após uma viagem. O nosso modo de vida atual faz com que a maioria destas coisas seja necessária, mas tudo isto tem um grande impacto no nosso ritmo biológico e na nossa saúde. E existe cada vez mais evidência da relação a esta desregulação constante do nosso ritmo circadiano e ao aumento de problemas relacionados com o sono, com uma maior fragilidade do sistema imunitário e com o aumento do risco de desenvolver algum tipo de doença crónica. 

Em relação ao sono, o nosso corpo tem a capacidade de sintetizar uma hormona, a melatonina, que tem como principal função a regulação do sono. Esta hormona é influenciada pela luz solar. à noite, quando nos encontramos num ambiente escuro e calmo, os níveis de melatonina no organismo aumentam e ficamos naturalmente com sono. Esta produção de melatonina é muitas vezes desregulada por causas simples como a falta de um ambiente propicio, porque no período ideal nos encontrávamos por exemplo a trabalhar, ou porque estávamos expostos à luz artificial do telemóvel ou da televisão, ou simplesmente porque até estávamos com uma produção de melatonina adequada e tínhamos sono, mas contrariamos isso e decidimos não ir dormir. 

Graças ao estudo da cronobiologia foi possível começar a relacionar o sono com o horário das refeições e com o aumento de peso e hoje compreendemos o impacto que estes fatores têm num objetivo de perda de peso por exemplo. A cronobiologia veio mostrar que devemos valorizar mais o nosso sono, não só em relação à quantidade de horas de sono em si, mas mais importante ainda, ao momento em que é realizado o sono, porque este tem características diferentes em horários diferentes e metabolicamente falando dormir 8 horas durante a noite não é igual a dormir 8 horas durante o dia, para além disso devemos ainda ter em conta qualidade do descanso.  Por isso é que muitas vezes em contexto de consulta insistimos muito com perguntas como, costuma dormir bem? E quantas horas? E na sua opinião, o sono é reparador? Acorda cansado/a?. 

A qualidade do sono vai afetar os nossos mecanismos de saciedade e apetite. Quando passamos mais horas acordados acabamos naturalmente por fazer um maior número de refeições e quando dormimos mal estamos mais cansados e temos uma maior tendência a fazer piores escolhas alimentares e a ceder a algumas tentações que habitualmente dispensávamos. Os estudos relacionados com a cronobiologia associam o sono e o horário em que realizamos as nossas refeições com o peso e realizar refeições no período de produção de melatonina, ou seja, à noite, está associado a uma maior acumulação de gordura e com o aumento do peso! Isto veio provar que o que antes pensávamos ser mito, afinal é verdade, comer à noite realmente engorda! Além disso o excesso de peso está relacionado com uma série de outros problemas crónicos como doença cardiovascular, diabetes, colesterol elevado entre outras, tornando isto numa bola de neve, porque dormimos mal, comemos pior, temos mais tendência a acumular gordura que se não conseguirmos perder nos traz mais problemas de saúde a longo prazo e que nos retira qualidade de vida. 

Existem algumas coisas que podemos fazer para melhorar a qualidade do nosso sono, como por exemplo:

– Reduzir estímulos como o café e os chás com mais cafeina como é o caso do chá verde e do chá preto num período entre 4 a 6h antes de ir para a cama;

– Praticar exercício físico ao longo do dia;

– Criar um ambiente propicio à produção de melatonina, com uma temperatura agradável e uma iluminação o mais reduzida possível;

– Ser o mais regular possível nas suas rotinas, tentar ter um horário certo de deitar e levantar e fazer as refeições, dentro do possível, sempre nos mesmos horários.  

Os estudos realizados ao nível dos efeitos da cronobiologia no nosso metabolismo indicam que temos um pico anabólico, que é no fundo a altura do dia em que gastamos mais energia, no pico da manhã ou inicio da tarde, nessa altura a oxidação de gordura e o efeito térmico dos alimentos é maior do que à noite, o que significa que gastamos mais energia nesse período, o que faz dele a altura ideal para ingerir também maior quantidade de alimentos. No fundo a diferença entre fazer uma alimentação dita “normal” e de nos alimentarmos de acordo com a cronobiologia é apenas que em vez de distribuirmos as refeições de igual forma ao longo do dia devemos dar primazia às refeições do período da manhã e inicio da tarde, quando ocorre o tal pico anabólico, ou seja, ao pequeno almoço e ao almoço, e depois ao jantar realizar uma refeição mais leve. A distribuição de macronutrientes mantém-se igual e não há obrigação de restringir hidratos de carbono ou gordura, a menos que seja para um objetivo de perda de peso em que já pode fazer algum sentido restringir, mas devemos respeitar sempre a distribuição das refeições em pequeno almoço, meio da manhã, almoço, meio da tarde e jantar por exemplo. 

Portanto, na prática podemos comer todo o tipo de alimentos na mesma. Iniciamos o dia com um pequeno almoço completo, com uma fonte proteica que pode ser leite, iogurte, queijo, ovos ou outra, com uma fonte de hidratos de carbono que pode ser pão, aveia, cereais, ou outra e com uma porção de fruta. Depois podemos, se fizer sentido, fazer uma refeição a meio da manhã, consoante as necessidades de cada pessoa, que pode ser por exemplo uma fruta e uns frutos secos. Ao almoço fazer uma refeição completa, com todos os macronutrientes, respeitando as quantidades no prato, ou seja, metade do prato deve ser ocupado por legumes, um quarto do prato por proteína que pode ser peixe, carne, ovo, tofu ou outra e um quarto de hidratos de carbono que pode ser batata, massa, arroz, cuscus etc.

Depois realizar um lanche ou snacks pequenos ao longo da tarde consoante a necessidade e a rotina de cada pessoa e por fim fazer um jantar mais leve, com quantidades menores do que as realizadas na hora de almoço ou com alimentos menos calóricos, como por exemplo com uma maior quantidade de legumes, podemos começar com uma sopa e depois comer a proteina acompanhada de uma quantidade de hidratos de carbono menor do que a realizada na hora de almoço, ou até acompanhada só com legumes, de modo a tornar a refeição menos calórica e a respeitar a cronobiologia. Depois de jantar devemos evitar a ingestão de grandes quantidades de alimentos. Em alguns casos pode haver necessidade de uma ceia, uma vez que esta costuma ser também uma altura problemática do dia, no sentido em que é muito comum aparecer aqui alguma fome emocional que nos leva a ir petiscar algum tempo depois do jantar, isto é de evitar, mas no caso de ser complicado há sempre a possibilidade de comer uma peça de fruta, uns palitos de legumes ou uns frutos secos, para saciar a fome e acalmar a vontade de petiscar alguma coisa, mas ao mesmo tempo para não ingerir um elevado número de calorias. 

Comer em alinhamento com estes ritmos biológicos parece melhorar o controlo glicémico e facilitar uma perda de peso saudável. No caso do objetivo ser a perda de peso muitas vezes o que fazemos em consulta é restringir a quantidade de hidratos de carbono e manter a estratégia das refeições de acordo com a cronobiologia, e ai é comum colocar apenas uma porção diária de hidratos para permitir à pessoa alguma liberdade se desejar fazer alguma refeição mais livre que não pode dispensar os hidratos, e depois é aconselhado que esta refeição com hidratos seja realizada ao pequeno almoço, ou ao almoço, e ai fica ao critério da pessoa, muita gente gosta de comer pão ao pequeno almoço, outras pessoas preferem ingerir a porção de hidratos na hora de almoço, neste caso é como a pessoa preferir, e assim garantimos que a maior ingestão de energia vai ser numa dessas duas refeições e depois ao jantar pode fazer uma sopa e depois fazer um prato com carne, peixe ou outra fonte proteica e acompanhar com legumes. Com esta estratégia promovemos um défice calórico e ao mesmo tempo respeitamos a cronobiologia impulsionando a uma perda de peso mais eficiente. 

Depois temos casos mais desafiantes como por exemplo pessoas que trabalham por turnos ou que viajam profissionalmente. Aqui a cronobiologia é ainda mais relevante, estas são pessoas que habitualmente saltam refeições, têm tendência a comer alimentos mais densos e mais ricos em gordura, muitas vezes porque é a alimentação que é fornecida no local de trabalho, é o que têm possibilidade de adquirir naquele momento ou como ficaram longos períodos de tempo sem comer acabam por ter mais tendência a escolher esses alimentos. São indivíduos que dormem em períodos fragmentados ou fora de horas e encontram-se muitas vezes em privação de sono porque simplesmente têm de trabalhar durante a noite quando supostamente seria a hora a dormir. Todos estes são gatilhos identificados que desregulam o ritmo biológico e estão fortemente associados a um risco mais aumentado de desenvolver doenças crónicas e problemas metabólicos. Então, em última análise estas pessoas estão mais predispostas a problemas crónicos apenas pelo seu trabalho em si, já nem considerando outros hábitos como a prática de exercício físico por exemplo. 

Aqui é ainda mais importante a intervenção do nutricionista e a sua abordagem da situação numa perspetiva de adaptação à cronobiologia, ou seja, temos de considerar estratégias para regular o ritmo biológico destes individuos, restringir calorias em determinada altura do dia pode ser uma opção, ou realizar por exemplo um jejum intermitente. Na prática isto significa que no caso de uma pessoa que trabalhe por exemplo por turnos, devemos tentar ao máximo manter a distribuição de refeições que seria feita se a pessoa não trabalhasse por turnos, distribuindo as calorias de forma a que no período da manhã a ingestão seja maior do que no final do dia. Imaginemos que a pessoa vai trabalhar às 10 horas da noite, em primeiro lugar vamos tentar que jante antes de ir trabalhar e depois que realize refeições pouco calóricas e o mais leves possível (lanches e snacks) durante o período de trabalho e idealmente, se possível, que as confecione em casa e leve consigo. E tentamos evitar aquela típica refeição de prato muito frequente a meio da noite e substituímos por uma refeição mais leve que não seja propriamente equivalente a um almoço ou jantar, porque esta refeição mais abundante além das questões relacionadas com a cronobiologia pode causar dificuldades de digestão e um aumento da sensação de sono e fadiga.  Depois é recomendado também que quando chegue a casa tome o pequeno almoço, mesmo que signifique que vai dormir dai a pouco tempo, porque o principal objetivo aqui é manter a distribuição de refeições o mais semelhante possível ao que seria a realidade se não fosse necessário trabalhar durante a noite. 

Este é claramente um grande desafio, porque além da questão da cronobiologia podem existir outras questões subjacentes como problemas de gastrointestinais, algum tipo de intolerâncias, ou outros, e além disso para alguém que trabalhe por turnos rotativos em que num dia trabalha de dia e no seguinte durante a noite é muito complicada a gestão do planeamento das refeições e da preparação da alimentação e ainda existem situações em que nem há a abertura da possibilidade de levar a alimentação de casa por exemplo, ainda há muito a fazer nesta área e a cronobiologia é um tema muito atual, que nos faz repensar algumas questões importantes não só a nível da alimentação, mas do nosso estilo de vida em geral e que nos encaminha para uma visão mais holística da nutrição.

Artigo escrito por Filipa Rodrigues, Nutricionista

Bibliografia 

  1. Calhau, C. (2018). Cronobiologia, regimes alimentares e obesidade. Viver Saudável. Disponivel em https://www.viversaudavel.pt/atualidades-em-ciencia-28/
  • Poggiogalle, E., Jamshed, H., & Peterson, C. M. (2018). Circadian regulation of glucose, lipid, and energy metabolism in humans. Metabolism: clinical and experimental84, 11–27. https://doi.org/10.1016/j.metabol.2017.11.017

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